Trekking no Parque Nacional dos Glaciares

Introdução: Depois de termos visitado o sector Sul do Parque Nacional dos Glaciares e nos termos maravilhado com os glaciares Perito Moreno e companhia, o passo seguinte seria visitar o sector Norte. O nosso objectivo era visitar (e andar sobre) o glaciar Viedma, o maior da Argentina, e percorrer alguns dos percursos que serpenteiam o maciço montanhoso no qual figuram duas montanhas míticas, tanto para escaladores profissionais como para amantes da montanha, o Fitz Roy e o Cerro Torre. Para isso, mudámos o nosso “campo-base” para a pequena vila de El Chaltén, criada por decreto do governo argentino nos anos 80 para servir de apoio aos milhares de escaladores e trekkers que invadem esta área todos os anos. O seu nome deriva do nome dado pelos nativos à montanha agora conhecida por Fitz Roy e significa “montanha de fogo”. A vila foi construída muito perto das montanhas e, para quem não gosta de trocar o conforto de uma cama quentinha pelo saco-cama dentro de uma tenda ao ar livre, é possível fazer percursos de 1 dia que visitam as principais atracções do parque, regressando sempre a El Chalten no final do dia. Mas para quem gosta de um contacto mais “íntimo” com a Mãe-Natureza, a opção de acampar é de longe a melhor, uma vez que isso permite poupar alguns quilómetros nos percursos de ida e volta, além de que torna possível coisas como acordar com o Fitz Roy resplandescente ao nascer do sol! O Outono é uma das melhores alturas do ano para visitar o parque pois, para além de se poder admirar a belíssima coloração da vegetação, o número de visitantes diminui acentuadamente, permitindo um contacto mais pacífico e privilegiado com a natureza. Isto, claro, que se o estado do tempo o permitir. Aqui, tal como Parque Nacional das Torres del Paine, as condições meteorológicas são muito variáveis e, quando más, estragam os planos de qualquer turista bem-intencionado! Em El Calafate, informámo-nos e sabíamos que o tempo estaria razoável na área nos próximos dias… Era tempo de partir!
No dia seguinte, o céu completamente limpo ofereceu-nos uma perspectiva fabulosa do maciço montanhoso, conforme nos aproximávamos de El Chalten. O motorista do autocarro até parou num miradouro junto à estrada para os turistas tirarem fotos! Antes de entrarmos na vila, o autocarro parou na sede do parque, onde fomos recebidos com informações acerca dos percursos disponíveis e das regras de convivência com a fauna e flora locais. O senhor até nos mostrou um esquema que costuma mostrar aos turistas que chegam e que mostra as montanhas que se podem ver ao entrar na cidade. Isto porque na maior parte das vezes, o estado do tempo não permite ver nenhum cume! Fomos afortunados logo de início… Depois de instalados no hostel, e de comer qualquer coisa, decidimos que não havia tempo a perder, e saímos para fazer um percurso até à laguna Capri, de onde se obtêm boas vistas para o Fitz Roy. O tempo estava quente, e o percurso a início era algo íngreme, por isso ainda transpirámos um pouco, apesar de termos andado apenas cerca de uma hora até ao miradouro do Fitz Roy. Belíssimo! Até agora ainda não tínhamos tido tanta sorte com o tempo na montanha. Algumas árvores ainda apresentavam cores brilhantes em tons vermelho-alaranjados, o que contrastava com o branco dos cumes das montanhas e glaciares circundantes. Quando chegámos à laguna, as suas águas límpidas e calmas eram o pano de fundo perfeito para uma paisagem fenomenal. Sentámo-nos um pouco nas suas margens a descansar, mas sem deixar de tirar fotos! Encontrámos poucas pessoas pelo caminho, o que confirmava o carácter mais selectivo desta estação no que toca ao número de pessoas na montanha. O ambiente era calmo e refrescante, e apetecia ficar ali para sempre, mas devíamos voltar a El Chaltén para chegarmos antes do anoitecer. No caminho de volta, voltámos a maravilhar-nos com vistas de um fantástico vale glaciar, com um rio a serpentear pelo seu meio. Regressámos satisfeitos, pois tínhamos tido sorte no primeiro dia, mas com a esperança que o estado do tempo assim se mantivesse nos dias seguintes. Antes de iniciarmos o trek, amanhã ainda iríamos visitar e caminhar sobre o glaciar Viedma (ver post seguinte), pois era a última oportunidade da temporada! Só no dia seguinte começaríamos a aventura na montanha.
1º Dia: Com tudo preparado, deixámos uma mochila no hostel e uma reserva para daí a 3 dias, e apanhamos uma carrinha que nos levaria por uma estrada de terra batida até à Hosteria del Pilar, de onde iniciaríamos o nosso trek. O tempo estava nublado e ameaçava chover… O percurso acompanha inicialmente um rio, mas progressivamente vamos subindo a encosta do vale, sempre com a companhia do Fitz Roy e montanhas adjacentes. Em particular, tem-se uma vista privilegiada do glaciar Piedras Blancas, que escorre alguns quilómetros desde a face do Fitz Roy até acabar numa laguna com o mesmo nome. A laguna não se vê deste lado do vale, mas era nossa intenção ir visitá-la após montarmos o acampamento. O estado do tempo foi melhorando gradualmente, mas a subida continuava… Não muito íngreme mas longa, e os ombros ressentiam-se das pesadas mochilas! Duas horas e meia depois de termos começado, chegamos ao acampamento Poincenot, numa zona plana junto ao rio. E estávamos completamente sozinhos! Não são muitos que se atrevem a acampar aqui em pleno Maio… Montámos a tenda, comemos umas sandes de salame e preparamos uma pequena mochila para levar connosco, com bebida e alguns snacks. Como tínhamos tido a experiência dos ratos no Parque das Torres del Paine, decidimos juntar toda a nossa comida em dois sacos plásticos e pendurá-los numa árvore. Ali, os ratos não trepavam e precisava ser um animal já muito grande para conseguir chegar lá… O nosso plano era ir até à laguna das Piedras Blancas, num percurso que descia parte do vale que tínhamos subido, só que agora do outro lado e junto ao rio. O trilho era fácil em termos de relevo, mas não em termos de piso. Grande parte do caminho foi feita em cima das pedras polidas que cobriam o antigo leito do rio, piso incerto e escorregadio, o que maça os pés dentro das botas. Quando chegámos ao ponto onde o rio recebe um pequeno riacho alimentado pelo degelo do glaciar, virámos à esquerda e começámos a subir para a laguna. Nesta parte, o vale talhado pelo glaciar está cheio de blocos enormes, pelos quais temos de passar pelo meio, por cima ou pelo lado, conforme os casos. Íamos seguindo o nosso instinto, assim como algumas mariolas estrategicamente colocadas. E após algum esforço, lá chegamos à laguna… E esperava-nos uma paisagem de tirar o fôlego! A laguna é rodeada por moreias laterais criadas pelo glaciar, o qual está agora em retrocesso, processo bem visível pela comparação de fotos de há 10 anos (que nós vimos num livro sobre glaciares). Ainda que recuado, continua a ser um glaciar lindíssimo, que liberta regularmente pequenos icebergues para a laguna e que se encaminham lentamente para o riacho que desce para o rio. A beleza e imponência destas paisagens não deixam de nos surpreender. Depois de algum tempo a admirar a paisagem, descemos e regressamos ao acampamento. O percurso de volta foi cansativo, e quando chegámos já não havia tempo nem energia para outro percurso. Mas havia tempo para uma surpresa… Quando chegámos junto da tenda, vimos uma grande águia a debicar a nossa comida! Afugentámo-la mas mais de metade da nossa comida já tinha desaparecido! Queijo, chouriço, salame, pão, nada escapou… Mas chegámos a tempo de salvar alguma coisa! Para os dias seguintes tínhamos agora as massas para 2 jantares, 2 sandes já feitas, agora destinadas para o almoço do dia seguinte, tostas para os pequenos-almoços e algumas barras energéticas para o resto dos dias. Restou-nos apanhar os restos de plásticos do chão e pendurar o saco do lixo no avançado da tenda. Pouco tempo depois, vimos 3 águias a rondar o acampamento… Pelo menos não precisávamos de nos preocupar com ratos! Tinhamos agora a companhia de um casal que tinha feito connosco o trek no Viedma. Tinham chegado ao final da tarde e montaram tenda um pouco afastados. Depois de fazermos uma massa fusilli 3 queijos para jantar, e termos comido ao anoitecer, fomos dormir, pois o dia seguinte ia ser difícil!
2º Dia: A noite foi fria (claro!) mas não tanto como nas Torres del Paine. Acordámos antes do sol nascer pois tínhamos a esperança que o estado do tempo nos permitisse ver o Fitz Roy resplandecente, reflectindo os primeiros raios da manhã. E assim foi! Durante uns breves minutos as montanhas ficaram brilhantes num tom laranja, como se estivessem a arder. Pode ser esta a origem do nome que os nativos davam ao Fitz Roy, El Chaltén, que quer dizer montanha de fogo… (Mas também pode ser devido ao facto do Fitz Roy às vezes ter nuvens acumuladas no seu cume de forma que parece um vulcão em erupção, tal como tínhamos visto no dia anterior) Tomámos o pequeno-almoço e preparámo-nos para o trek até à laguna de Los Três. Uma caminhada curta, mas bem difícil! Sempre, sempre a subir, e com um piso irregular, com pedras soltas e degraus num trajecto serpenteante pela montanha acima. Mas o esforço vale a pena! O céu estava parcialmente nublado mas a visão do Fitz Roy e montanhas vizinhas era fantástica. A superfície da água da laguna reflectia o panorama, criando um efeito espectacular. Avançando pela moreia do glaciar, subimos um pouco e fomos espreitar a laguna Succia, uma laguna de intensa cor azul, num vale mais abaixo. Do glaciar acima dela caíam frequentemente pequenas avalanches, fazendo um barulho intimidante. A água da laguna tinha assim um aspecto branco “sujo” (daí o seu nome?), devido a esses desprendimentos. A vista para o lado oposto também não ficava atrás. Podiam ver-se as lagunas Madre e Hija, pelas margens das quais segue o “sendero” com o mesmo nome. Era tempo de descer, até porque ainda tínhamos muito para andar! A descida, claro, demorou muito menos, mas não deixa de ser cansativa para determinados muscúlos e para os joelhos. Aqui, a ajuda do bastão (metálico ou natural) é fundamental. Quando chegámos ao acampamento, almoçámos, desmontámos a tenda, fizemos as mochilas e, às duas da tarde, iniciámos o percurso que nos levaria ao acampamento onde passaríamos a segunda noite, o acampamento De Agostini. Seguimos então primeiro pelas margens das lagunas Madre e Hija, sendo o trilho um pouco difícil de encontrar no início pois junto à laguna o terreno estava muito lamacento e era necessário encontrar trilhos secos. O estado do tempo melhorou e começou a ficar quente. Quase que apetecia tomar uma banhoca nas águas gélidas da laguna! A seguir, o trilho embrenha-se pelos bosques e inicia-se uma longa descida que nos levou até ao cruzamento com o trilho que vai desde El Chaltén até à laguna Torre. As mochilas pesavam, e já estávamos algo cansados, mas daqui ainda faltava uma hora para o acampamento! Ao fundo já se via o Cerro Torre, montanha que é um verdadeiro mito da escalada ao mais alto nível. Neste vale, as árvores já não tinham a coloração de Outono, era como se o inverno já tivesse chegado… Devíamos ter vindo cá 2 semanas antes! Não se pode ter tudo… O caminho parecia interminável, pois o cansaço aumentava e cada subida, por muito curta que fosse, castigava-nos os músculos já doridos. Seguimos junto ao rio e acercámo-nos de uma moreia glaciar, onde o acampamento está localizado. Era já o fim da tarde e estávamos, mais uma vez, completamente sozinhos! Desta vez, não teríamos mesmo nenhuma companhia. Montámos a tenda, e subimos um pouco para admirar o pôr-do-sol, atrás do cerro Torre. A laguna estava apenas a 10minutos de distância mas estávamos demasiado cansados para lá ir… Descemos para fazer o jantar. Era necessário água para ferver e para fazer sumo. Fomos até ao rio, enchemos uma garrafa mas o tom leitoso desta não nos inspirou grande confiança. A verdade é que a água que corre dos glaciares tem esta coloração devido à presença, em suspensão, de pequeníssimas partículas que advêm da acção erosiva do glaciar sobre as rochas. Em princípio, não nos faria mal (pensamos nós!), mas decidi procurar uma linha de água límpida para encher as garrafas. A alguns minutos do acampamento, encontrei um pequeno riacho que descia das montanhas e, assim, não chegámos a provar a água leitosa! Depois de mais uma massa ao jantar (desta vez, spaguetti à bolonhesa), já à luz de frontal, fomos para dentro da tenda. O saco do lixo foi pendurado novamente no avançado da tenda mas, desta vez, não havia águias por perto. Ora, onde não há águias…
3ºDia: Durante a noite o vento foi-se levantando, ou melhor, foi descendo pelo vale, vindo das montanhas, com um barulho por vezes ensurdecedor. Mas o acampamento está sob a protecção da moreia e a tenda estava, assim, pouco sujeita ao vento. Começou a cair alguma chuva. Acordámos a meio da noite (isto é, eram dez e meia da noite!) com o barulho do saco do lixo a mexer-se… Seria o vento? Dirigimos a luz do frontal para o saco e… salta um rato lá de dentro! Apanhámos um susto, mas o que podíamos fazer? Apenas esperar que eles se ficassem pelo lixo e deixassem o interior da tenda para nós… Apesar do barulho do vento e dos barulhos ocasionais no saco do lixo, lá fomos dormindo a espaços até de manhã. Quando acordámos, tínhamos a esperança de ver o cerro Torre tal como tínhamos visto o Fitz Roy, mas não tivemos essa sorte! O dia amanheceu nublado, com as montanhas escondidas por detrás das nuvens. Tomámos o pequeno-almoço e seguimos para a laguna Torre. Lindíssima! Vê-se ao fundo o glaciar Grande, de onde se desprendem os pequenos icebergues que se juntam na margem onde nos encontramos. Fascinante! Mas tínhamos de seguir em frente, pois queríamos ir até ao miradouro Maestri, a cerca de uma hora da laguna. Prosseguimos pelo cimo da moreia, procurando manter o equilíbrio contra o vento, por vezes forte, que se fazia sentir. O piso não era fácil, e foi piorando, pois quanto mais se avançava na moreia, mais soltas estavam as pedras e menos notório era o trilho. Mas isso era de longe compensado pelas vistas fabulosas que se tem do glaciar. É este a grande vantagem do miradouro Maestri, não a visão das montanhas, em particular do cerro Torre, pois o trilho mão vai suficientemente longe para se poder ultrapassar montanhas adjacentes que ocultam parte das montanhas no horizonte. A visão das montanhas é melhor, de facto, a partir das lagunas. Mas o glaciar surge em toda a sua glória, aumentando a olhos vistos, conforme nos vamos aproximando. Quando cheguei ao miradouro, só me apetecia ir mais para a frente, para poder ver o glaciar mais de perto e de cima, mais do que de frente. Mas a partir daí, como um sinal avisava, o terreno tornava-se perigoso, devido a constantes deslizamentos e queda de pedras. Tive assim de conter-me e contentar-me a visão que dali tinha. Mas que visão! Tem-se uma panorâmica de toda a extensão do glaciar, desde a sua área de acumulação coberta de neve (onde ganha massa), logo abaixo dos picos das montanhas que o rodeiam, passando por uma zona de rocha muito inclinada e onde o gelo pouco se agarra, acabando por cair já no início da área de ablacção do glaciar (onde perde massa), onde o gelo é visível em toda a sua beleza, com as crevasses ondulantes, salpicadas de detritos rochosos e quase cobertas deles já perto das margens. Estou absolutamente rendido a estas maravilhas naturais! Olhei também para o cimo das montanhas e imaginei como seria olhar para lá deles, e admirar os campos de gelo… Talvez da próxima, quem sabe?! Era tempo de regressar, desta vez a descer gradualmente até à margem da laguna, onde vimos as primeiras pessoas do dia, vindas de El Chaltén. Almoçamos junto à laguna, com um pano de fundo sublime, e dirigimo-nos ao acampamento para preparar desmontar a tenda e preparar as mochilas. Já com saudades, despedimo-nos deste cenário de sonho e iniciámos a caminhada de regresso. Foram três horas e meia de percurso, com algumas pequenas subidas, mas quase sempre plano, e com uma descida final para El Chaltén. Durante o caminho, o cerro Torre foi quase sempre visível, juntando-se-lhe o Fitz Roy, a partir de certo ponto. Cruzámo-nos com algumas pessoas que faziam a caminhada de 1 dia de ida e volta para admirar a laguna e as montanhas. A parte final pareceu, mais uma vez, nunca mais acabar, e El Chaltén teimava em não aparecer! A verdade é que só se vê a vila quando já se está a poucas dezenas de metros, pois está aninhada entre os montes. E estávamos assim de regresso à civilização! Cansados, sonhando com uma boa refeição e uma cama quente, congratulámo-nos com o fim deste trek mas, ao mesmo tempo, sentíamos já saudades destes 3 dias em que andamos quase sozinhos pelo Parque Nacional dos Glaciares que, estou certo disso, nunca esqueceremos.


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