O pintor e escultor Miguel Ângelo passava horas olhando um
bloco de mármore, dizendo a lenda que ele conseguia imaginar os mais ínfimos
pormenores da sua obra ainda não criada pelas suas mãos, mas já visualizada
pelo olho da sua mente. Ao contrário dele, os comuns dos mortais apenas podem admirar
a beleza das suas esculturas depois da pedra em bruto ter sido moldada à
vontade do seu criador. Da mesma forma, no passado houve quem tivesse sonhado
uma região em Portugal onde a natureza agreste pudesse ser domada para obedecer
às necessidades do Homem, e ser dedicada ao fabrico do néctar do deus Baco.
A
região vinícola demarcada mais antiga do mundo, a Região Demarcada do Douro,
criada em 1756 pelo Marquês de Pombal, tem uma beleza que é fruto em iguais
porções da generosidade divina e do suor humano, resultante do trabalho árduo e
continuado de uma paisagem natural, bela por natureza mas que se tornou única
no mundo pela mão do Homem.
Na região do Douro há muitos destinos apelativos e todos têm
os seus atractivos, mas a região de Carrazeda de Ansiães, tão rica em
património natural, histórico, gastronómico e cultural, há muito que chamava o
Viajar Entre Viagens a fazer por aqui uma incursão. Mas as solicitações são
muitas e, tal como o ditado popular diz “Santos da casa não fazem milagres”,
íamos adiando uma visita mais detalhada. No entanto, graças ao convite da Smart
Travel 2014, decidimo-nos finalmente a explorar este pedaço do nosso país por
vezes tão injustamente esquecido.
O nosso percurso baseou-se no Circuito Turístico do Castelo
e do Douro, recentemente criado pelo Centro Interpretativo do Castelo de
Ansiães e apoiado pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, que pode ser
desfrutado em visita guiada aos Sábados e Domingos durante os meses de verão (com
inscrição prévia – tel: 278 610 200/278 618 253, e-mail: cica
@cmca.pt), ou por iniciativa
própria em qualquer altura do ano.
Esta área é hoje facilmente acessível para quem vem do
litoral, pela rede de auto-estradas A4 (para quem vem do Porto) ou A3 e A7 (de
Braga e Guimarães), seguindo-se o novo IC5, que faz a ligação da A4 a Carrazeda
de Ansiães (indo até Miranda do Douro). Carrazeda de Ansiães fica assim agora a
menos de duas horas de carro da cidade do Porto. Para aqueles enamorados pelos
comboios e pela degustação mais lenta da paisagem, nada bate a Linha Ferroviária
do Douro, que liga a cidade do Porto ao Pocinho. Quem se dirige a Carrazeda
deve sair na paragem do Tua e apanhar transporte público (apenas 2 vezes por
dia) ou um táxi que por uma pequena soma o levará rapidamente até à vila.
Pelas 10.00 h, visitamos o recém-criado Centro Interpretativo
do Castelo de Ansiães, na vila de Carrazeda de Ansiães, onde se encontra
exposto, de forma concisa e com uma ordenação cronológica, o processo histórico
concelhio, centrando-se o grosso da informação no castelo e vila amuralhada de
Ansiães. Aqui a arqueóloga responsável fez-nos uma breve apresentação, antes de
nos dirigirmos ao Castelo, localizado a cerca de 7 km da vila.
Local arqueológico classificado como Monumento Nacional, a
sua história evoluiu de forma ininterrupta desde o 3º milénio a.C. até 1734,
quando se dá a transferência da sede de concelho de Ansiães para Carrazeda. As
características geográficas do sítio, localizado numa posição cimeira face ao
planalto de Ansiães e ao rio Douro, terão sido o principal motivo desta
ocupação contínua durante 5000 anos, em particular a sua vocação para defesa
natural durante a Reconquista Cristã.
Fora das muralhas pode observar-se a
enigmática igreja de S. João Baptista, de uma só nave com duas entradas
laterais, de raiz pré-românica com sucessivas adaptações e restauros durante a
Idade Média.
Já dentro das muralhas, podemos admirar as ruínas restauradas das
habitações que rodeavam a fortificação central, assim como a bela Igreja de S.
Salvador de Ansiães, em que se destaca o tímpano “Pantocrator” do portal
principal, cuja iconografia de “Cristo em majestade” constitui o mais completo
exemplar do românico português. Subindo para a parte alta da fortificação, junto
à Torre de Menagem, acedemos à muralha e pudemos ter uma visão panorâmica sobre
o concelho e arredores, inclusive para sul do rio Douro.
Daqui seguimos em direcção ao rio, passando pelas aldeias de
Selores, Seixo de Ansiães e Beira Grande, fazendo a estrada cénica que liga
esta última localidade às margens do rio. Durante este percurso, entramos no
reino do Vinho do Porto, com a paisagem dominada pelas encostas do vale do
Douro povoadas de socalcos e vinhedos. Por esta altura (Dezembro) ainda é
possível observar restos da cor vermelha da vinha que terá sido deslumbrante em
Outubro e Novembro. Depois de pararmos no Miradouro da Rota do Douro, para
admirar esta maravilhosa simbiose da paisagem natural e do esforço humano,
prosseguimos em direcção à Senhora da Ribeira, percorrendo um troço
deslumbrante onde temos vistas fabulosas para o outro lado do rio, onde ainda
passa o comboio que liga o Tua ao Pocinho.
Nesta pequena localidade junto à margem do rio, almoçamos no
restaurante homónimo, sendo a especialidade da casa o peixe do rio frito, mas
onde se podem apreciar outras iguarias, tais como a deliciosa posta de carne
grelhada, tão característica de Trás-os-Montes.
Depois de almoço, seguimos rio acima, pela estreita estrada
que percorre a sua margem e de onde se pode admirar (e provar!) a outra cultura
por aqui dominante, a da laranja. Alguns quilómetros à frente, paramos para
visitar o armazém da Quinta do Lobazim, onde se encontram alguns tonéis e pipas
impressionantes, que já guardaram milhares de litros do líquido tão apreciado
pelo mundo inteiro, e em que ficamos a conhecer um pouco mais da história desta
notável Quinta duriense e do processo de fabrico do Vinho do Douro.
Retomando o nosso percurso, a estrada segue em frente para a
localidade de Lousa, mas nós viramos encosta acima, em direcção à aldeia de
Vilarinho da Castanheira, antiga sede de um concelho medieval. A estrada, e o
que a rodeia, impressiona mais uma vez todos os que a percorrem. Na aldeia,
visitamos o recém-inaugurado Museu da Memória Rural, um museu muito bem
organizado e delineado, dedicado à divulgação e preservação das memórias
patrimoniais imateriais do concelho de Carrazeda de Ansiães. Trata-se da
primeira unidade museológica a trabalhar de forma abrangente temáticas
relativas à cultura rural da região duriense, nomeadamente no que toca aos
ofícios tradicionais, e aos ciclos do vinho e do pão.
Depois de uma prova de Vinho do Porto, e uma breve conversa
com o presidente da Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, regressamos rapidamente
à sede do concelho, passando pela aldeia de Fontelonga, já quando a noite se
punha.
Estava assim completo um dia em cheio, passado numa região única
em Portugal e no Mundo, e que merece com certeza a visita de um número crescente de turistas nacionais
e estrangeiros.