Praticamente abandonada numa pequena
ilha desolada no seio da laguna de Veneza há uma catedral bizantina, construída
sobre terrenos lamacentos e pantanosos. Outrora, um dos edifícios mais
importantes do Império Bizantino, a basílica jaz hoje praticamente abandonada e
longe dos olhares predadores dos milhares de turistas que chegam anualmente a
Veneza. No entanto, foi aqui, nesta pequena ilha, hoje com pouco mais de 50
habitantes, que se iniciou o povoado de Veneza.
Durante a Antiguidade e Idade
Média, toda esta região da laguna de Veneza era uma área inóspita, com poucas
condições de salubridade e pouca atractiva para a fixação da população e por
conseguinte o aparecimento de povoados. No entanto, uma população fugidia, na
tentativa de se preservar das investidas bárbaras durante a Idade das Trevas, começou
a rumar às ilhas no interior da laguna, um espaço para se resguardarem de um
mundo cada vez mais “negro”.
Os povos bárbaros que vinham do leste
da Europa e da Ásia, os Ostrogodos e Visigotos, entravam em Itália e com uma
crueldade assinalável, subjugavam a população aos novos senhores do poder. As
populações viviam em clima de medo já que a superioridade militar e estratégica
dos bárbaros era evidente. O medo era tal, que a população de Torcello aumentou
de tal forma que se tornou um dos principais refúgios da altura. Veneza, ou
melhor Torcello, permaneceu por conquistar durante séculos pois nenhum império tinha
interesse pelos territórios cheios de lama e pantanosos, já que as decrepitas condições
de vida e a facilidade de propagação de doenças eram desencorajadores para a
criação de cidades. Mas entre os séculos VII e XI, a população de Veneza (na
altura Torcello) começou a crescer e atingiu cerca de 20 000 habitantes. Esta
população fugia dos tempos difíceis que se viviam na Itália continental, em
plena Idade Média, fruto das invasões bárbaras, e que pioravam de dia para dia.
Apesar de Veneza nunca ter sido conquistada pelos impérios do Oriente, a
população começou a aumentar e expandiu-se para a zona de Rialto para construir
o que hoje conhecemos como Veneza.
Mas a natureza e as más condições
de vida não davam tréguas. Nos séculos XI e XII, uma epidemia de malária quase
levou a população das ilhas à extinção. Os anos passaram e Veneza foi crescendo
novamente e prosperando, tendo a sua localização um papel determinante na sua
história. Hoje, Veneza já não é Torcello. A maioria dos italianos e europeus já
nem sabem que a cidade começou nesta pequena ilha. A história parece estar quase
tão esquecida quanto aquela catedral, a Catedral de Santa Maria Assunta, fundada
em 639, tão bem preservada e com mosaicos bizantinos dos séculos XI e XII.
Torcello é hoje uma pequena aldeia rural. Com pouco mais do que campos
verdejantes, vinhas, ovelhas a pastar e um canal que liga o porto de
desembarque à catedral, passando pela ponte do Diabo, pela praça, museu e pela
igreja de Santa Fosca.
Subir ao campanillo da catedral é
um oportunidade extraordinária para perceber que aqui, longe da Veneza dos
postais ilustrados, nasceu uma das cidades mais bonitas do mundo. Outrora
esquecida do resto da Europa, hoje Veneza está no imaginário romântico de quase
todas as pessoas, no entanto, a maioria delas ignora que o local originário de
Veneza continua esquecido e abandonado tal e qual como há tantos séculos atrás.