Eu podia viver aqui (Himbas)

Sempre que visito aldeias e grupos tribais sinto um apelo estranho da natureza. Quem me conhece sabe que adoro o contacto com culturas ancestrais e que desfruto imenso daquilo que têm para me ensinar. Desta forma, quando encontro grupos étnicos que se distinguem pela extraordinária forma como sobrevivem neste mundo globalizado, tenho a sensação que tenho pouco tempo para aprender com eles. Com os Himba senti isso mesmo.


Sim, eu podia viver aqui. Parece estranho, mas não é. Visitei os Himba numa viagem organizada de overland Nomad pelo Namibe e, apesar da visita ter sido curta, foi bastante reconfortante e interessante. Próximo de Opuwo, a tribo Himba que visitei não é uma aldeia normal. É muito mais do que isso, é o resultado do sonho de um médico europeu, Jaco, que depois de se ter apaixonado por uma jovem Himba, Mukajo, descobriu que ela padecia de leucemia. Durante o tempo que viveram juntos na Namíbia, o médico tratou da sua amada mas nunca conseguiram ter filhos devido à sua débil condição de saúde. Como forma de compensar essa "falha" no amor, os dois começaram a acolher crianças órfãs, especialmente vítimas de malária (doença que mais mata nesta parte do planeta). As crianças iam chegando e as forças eram cada vez menos, quer do europeu, quer da sua amada. Começaram a acolher também mulheres Himba, muitas abandonadas pelas famílias e pelos maridos, outras viúvas. Uma comunidade começou a crescer.


Mas, um dia, Mukajo morreu e com ela a felicidade do médico europeu. No entanto, Jaco sabia que tinha algo muito importante para cuidar: uma comunidade de mulheres e crianças que não tinham nada nem ninguém neste mundo. E assim nasceu esta aldeia.


O tempo passou e o jovem médico europeu também se juntou à sua amada, mas, a aldeia e o seu projecto perduraram no tempo.  Hoje, esta comunidade conta com trinta e nove crianças com menos de quinze anos, trinta e seis mulheres e apenas seis homens. Uma escola na entrada da aldeia recebe um professor durante a semana que ensina estas crianças a ler e a escrever. Mas, a verdadeira educação ainda é dada pela comunidade, onde se ensinam práticas culturais ancestrais e tradições milenares.


As mulheres vendem artesanato local e tentam manter vivas as tradições. São responsáveis por colher diariamente a água e a lenha e manter as habitações da aldeia. Os homens continuam a ser responsáveis pela caça e pastoreio. As crianças, essas, brincam na terra vermelha, tal como brincaram os seus antepassados.  As cabras e ovelhas são o bem mais precioso da aldeia. A água é também um recurso determinante nesta área do planeta. É tão escassa que não é usada para higiene diária, sendo substituída pelas cinzas.


Mas, os Himba que hoje habitam o norte da Namíbia são cada vez menos. São os últimos sobreviventes dos nómadas Hereros que vieram de Angola fugidos à guerra e ao genocídio. 


As mulheres, detentoras de uma beleza singular e de um sorriso generoso, exibem o seu corpo untado com lama e manteiga, marca da sua identidade, que pode ferir os olfactos mais sensíveis. Apesar de não tomarem banho, o seu cheiro intenso não me incomoda. É o cheiro da terra, é o cheiro da comunhão com a natureza.  As meninas, ainda pequenas e energéticas exibem um colar colorido de madeira, representando a sua pureza. Todas usam o fogo e o fumo para a sua higiene intima e como repelente de insectos.


Com pouco mais de 50 mil indivíduos espalhados pela Namíbia e Angola, os Himba vêem o seu futuro ameaçado. Os terrenos são cada vez menos, o nomadismo foi proibido e estão agora obrigados a fixar-se em aldeias e a escolarizar-se.


As tradições que perpetuaram durante séculos podem estar ameaçadas. As mulheres continuam a vestir-se com saias curtas de pele de carneiro, cobrindo os seus cabelos com extensões besuntadas de gordura de manteiga e ocre (otjize) e calçando sandálias de pele com solas de pneu. O otjize é perfumado com resinas das plantas locais e é considerado por muitos o primeiro cosmético do mundo. É extremamente valorizado na comunidade Himba e símbolo de beleza.


Os penteados das crianças são um retrato da riqueza cultural deste povo. Normalmente as crianças e bebés usam a cabeça rapada mas à medida que os anos vão passando, no topo, deixam um tufo de cabelo crescer. Esse tufo é transformado num trança entrelaçada que nos rapazes se estende para a parte traseira da cabeça. As raparigas fazem duas tranças entrelaçadas na direcção do rosto, a maioria das vezes paralelas ao alinhamento dos seus olhos. Mas, uma rapariga pode possuir apenas uma trança na direcção do rosto, isto significa que possui um irmão ou uma irmã gémea. Estes penteados mantêm-se até à puberdade. Os rapazes mantêm a trança mesmo na idade adulta enquanto são solteiros. Quando casam, deixam a trança e passam a usar cabelo rapado por baixo de um chapéu. Quando enviúvam, deixam o chapéu, exibindo o cabelo sem trança. As raparigas substituem as tranças pelo cabelo entrançado coberto de Otjize. Quando casam, sobre este cabelo colocam uma coroa feita de pele de carneiro designada por Erembe.


Rituais como o da circuncisão masculina, os casamentos arranjados ou a poligamia masculina continuam a fazer parte da cultura Himba.


Provavelmente uma das primeiras tribos vitimas de genocídio durante a ocupação alemã no início do século XX, os Himba têm sobrevivido à ganância humana, a predadores, a colonizadores, à aridez do deserto e até às alterações climáticas. Com ou sem a protecção de Mukuru (deus venerado pelos Himba), pelos seus ancestrais, ou pela feitiçaria e magia negra, os Himba têm resistido à crescente globalização, mantendo-se isolados em aldeias e comunidades fechadas. São poucas as que aceitam receber turistas, e na maioria das vezes, aquelas que os recebem são criadas para perpetuar as tradições. Visitar esta comunidade Himba na Namíbia foi assim, para mim, um privilégio.


E sim, tive vontade de ficar. Montar a minha tenda, viver com eles durante algum tempo. Tinha tanto para aprender e eles tinham tanto para me ensinar.


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